Páginas

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Como ficam as ideias na cidade sem livrarias?

Convivo com a troca de ideias. São as que circulam entre amigos, companheiros de jornalismo e escritores, ativos ou eventuais. Correspondo-me com todos por e-mail, preferencialmente, também com os meus leitores. Nesse meio há o cuidado particular da não agressão à língua portuguesa e o esforço individual de não se atrofiar ou vandalizar demasiadamente a escrita, como está ocorrendo de forma crescente na internet. Portanto, existem pessoas que articulam pendores e determinada elegância na escrita, no uso das palavras, com o conteúdo das mensagens. Parece-me educado, estimulante e cativante esse exercício intelectual, de certa forma. Todas essas pessoas lêem livros.
Jamais me imaginei participando de alguma reunião formal de Academia de Letras, por exemplo. Pois aconteceu na última sexta-feira à tarde, 26 de agosto, justamente em Caçapava-SP, a cidade em que vivo e que me atêm. O convite partiu do acadêmico Brasilino Alves de Oliveira Neto, advogado, que deságua poesias e poemas no saite Recanto das letras. Ele também promove encontros de convivência para conversa fiada, no aconchegante espaço de lazer que mantém no local do seu escritório de advocacia. Foi o respeito às letras que nos aproximou há uns dois anos. E foi o fato de Brasilino ser atraído à leitura deste blog crítica & afago que o fez me convidar para a reunião da Academia.
A Academia Caçapavense de Letras completará quatro anos no próximo dia 8 de outubro. É associação civil de pouca idade, presidida pela acadêmica Lourdes Mesquita de Siqueira. Acompanhei a reunião mensal dos acadêmicos e, como ouvinte, fui atraído pelos assuntos discutidos. Por fim, sem querer transgredir o perfil da reunião, tive a oportunidade de me apresentar como autor do livro “Um Quarto de Mil”, que reúne contos ficcionais breves de exatas 250 palavras e inédito na literatura brasileira. Esta obra ficcional foi idealizada e escrita em Caçapava, no sítio da Mata Pequena. Neste sítio me dedico ao ofício da escrita e produzo artigos para a imprensa. Fiz questão de deixar transparente a minha identificação com a cidade, por respeitá-la. No que escrevo e por onde ando, Caçapava é sempre chancelada. Afinal, tem população de 85 mil habitantes. É local da minha produção literária ou jornalística, mesmo eu vivendo na roça como eremita depois de ter sido cosmopolita. Eu a homenageio assim como ela já me homenageou em 14 de abril de 2009, na data do seu aniversário, em solenidade na Câmara Municipal (ver o blog Teares e Medrares).
Mas, na reunião da Academia Caçapavense de Letras, um comentário me chamou atenção: Caçapava é cidade que não possui livraria. Nenhuma que venda livros. A que existia fechou e foi transformada em loja óptica no centro. Alguns poucos títulos – inexpressivos no mercado editorial – podem ser encontrados como subprodutos numa determinada locadora de vídeos, ou em escassas bancas de jornais. As ditas “livrarias” são na verdade papelarias de material escolar ou de artigos para escritórios. Portanto, a existência de Academia de Letras em Caçapava, cidade sem livrarias, é mérito emblemático. Talvez realidade pontual, ou constrangedora, a sinalizar a fragilidade e inexistência de ações culturais do poder público, também da iniciativa privada, para valorizar a literatura, fomentar a leitura na rede escolar e na comunidade. Então, um universo de iniciativas poderá ser colocado em prática para valorizar o livro e os novos autores, para circular ideias e pensamentos, promover obras ficcionais e não-ficcionais, os escritores, para oportunizar a venda de literatura. A Academia Caçapavense de Letras anuncia, inclusive, uma feira do livro mais para o final deste ano. Que ela seja bem-vinda.
O Sindicato Nacional dos Editores de Livros encomendou, este ano, pesquisa com 500 editoras. O censo inédito revelou que o setor de livros no Brasil é maior do que se supunha até agora. Constatou-se que há mercado para 4 bilhões de faturamento anual, 30% a mais do que se estimava. Ao mesmo tempo que essa informação era tornada pública, a edição 2.228 da revista Veja publicava o inquietante artigo “Poucos amigos”, do articulista J. R. Guzzo. Nele, Guzzo afirma que “a leitura de livros, ou de qualquer coisa escrita, não parece estar num bom momento no Brasil de hoje. (…) A leitura está a caminho de se transformar num hábito do passado. Cada vez mais, no dia a dia, sua valorização é posta de lado – ou ‘relativizada’, como se diz”. O articulista menciona algumas situações em que o livro poderia figurar como elemento virtuoso: nas empresas e entre os seus executivos; no recrutamento de pessoas para saber o que o candidato está lendo; personagem de novelas de televisão lendo um livro; na publicidade de consumo. Eis algumas maneiras de o livro aparecer e a sua imagem ser difundida. Ao concluir o seu artigo, Guzzo escreve: “Naturalmente, ninguém se coloca hoje como inimigo dos livros; mas é certo que muitos se beneficiam com o fato de que a leitura, nestes dias, tem poucos amigos na praça. Quanto menos se lê, menos ideias são mantidas em circulação. Quanto menos ideias, menos espaço sobra para a discordância, a procura de alternativas e a fiscalização dos atos do governo”.
As anotações históricas revelam que o pior inimigo para a Igreja Católica foram os livros. Neles as pessoas ficavam sabendo de coisas que não sabiam, porque os padres não lhes contavam, e descobriam que podiam pensar por conta própria, em vez de aceitar que os padres pensassem por elas. “Os livros, ou, mais exatamente, a possibilidade de reproduzir de forma ilimitada palavras e ideias, foram a sua pedra fundamental”, escreveu Guzzo, aflorando a imagem social da França, de 200 anos atrás, descrita pelo escritor francês Stendhal (Henri-Marie Beyle), retratista da existência humana em sua época.
O cenário atual é inquietante. Portanto, exige a reflexão, o pensar. É difícil entender como uma cidade pode ser digna sem ter ao menos uma livraria e com acervo atualizado. O desconforto pode ser dramático para a população de Caçapava, desacostumada e não estimulada ao hábito da boa leitura de livros, na cidade que não possui livrarias, onde circulam jornais sem independência, imparcialidade e seriedade, que se deixam dominar por temas oficiais menores e de interesse da autoridade pública sovina para o bem comum. Um perigo político, social e cultural que faz embotar ideias e condicionar o cidadão à inércia mental. A contrapartida saudável é o desafio da prática civil, aquela exercida por cidadãos de bem e letrados que respeitam a literatura, os que podem honrar e dignificar a Academia de Letras da cidade para aprimorar a saudável circulação de ideias na coletividade. Assim é a prática da cidadania. Pelo menos isso, na falta do resto.

Carlos Karnas
31/08/11